Isaura Assunção da Silva Borges Coelho

Ana Pires e Lucília Nunes1

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Isaura Assunção da Silva [Borges Coelho por casamento], filha de Francisco Dias da Silva e de Maria Assunção da Silva, nasceu a 22 de julho3 de 1926 em Portimão e faleceu a 11 de junho de 2019, na Parede, onde residia.

Qualquer referência a Isaura traz inevitavelmente a luta pelo direito ao casamento das enfermeiras dos Hospitais Civis. Era, aliás, referida pelos agentes da PIDE como “a casamenteira”4, na altura em que “trabalhava no Hospital dos Capuchos, onde conseguimos recolher setecentas assinaturas do pessoal”5. Mas Borges Coelho denunciou também as terríveis condições de trabalho que, ao tempo, se viviam nos hospitais: jornadas de 12 ou 24 horas, turnos noturnos (as chamadas “velas”) 30 dias seguidos (chamado «regime das 30 velas»), apenas com uma folga semanal e obrigatórios de 6 em 6 meses, faltas de material como roupa ou material técnico e doentes deitados, em colchões, no chão. A luta pela dignificação da profissão esteve sempre presente na sua vida tendo sido delegada sindical na Maternidade Alfredo da Costa desde 25 de abril de 1974 até à sua aposentação.

Ingressou no Curso Geral de Enfermagem, em 1949, na Escola de Enfermagem Artur Ravara, com 23 anos. Iniciou a sua vida profissional em 1952 no Hospital de Santo António dos Capuchos em Lisboa.

No ano seguinte, a 3 de novembro de 1953, foi presa “para averiguações, tendo recolhido ao depósito de presos de Caxias”6, tendo sido uma das mulheres que, sem pertencer a uma organização politica, foi condenada pelo Tribunal Plenário de Lisboa, no dia 16 de Julho de 1954, a pena maior. Foi condenada a 2 anos de prisão maior, à perda de direitos políticos por 15 anos e a “medidas de segurança” prorrogáveis o que fez com que a sua prisão se prolongasse por 4 anos, dois dos quais em isolamento, sendo expulsa da função pública. A extrema debilidade em que se encontrava e a forte contestação que a sua detenção originou acabou por levar à sua libertação, em 1957, graças a uma amnistia aquando da visita da rainha Isabel II de Inglaterra, ficando com residência fixa em Portimão em casa dos pais.

Na sua “biografia prisional”7, narrou sinteticamente o processo de ter sido presa, punida sucessivamente e ter tido noção da prisão da sua irmã Hortência que tinha entregado o abaixo-assinado a Salazar. A sua luta pelo direito ao casamento das enfermeiras dos hospitais civis começou quando 12 enfermeiras do hospital Júlio de Matos foram despedidas por serem casadas. Promoveu um abaixo-assinado dirigido ao Presidente do Conselho Oliveira Salazar, ao Cardeal Cerejeira e ao Enfermeiro-mor dos Hospitais Civis, exigindo a revogação do parágrafo 4º, do artigo 3º do decreto-lei 31913 de 12 de março de 1942 que referia “o tirocínio ou prestação de enfermagem hospitalar feminina são reservados a mulheres solteiras ou viúvas sem filhos” (p. 229 do referido decreto).

A duração da pena e a brutalidade com que foi tratada, quer durante o julgamento quer durante a prisão, poderão ser enquadradas pelas ideias do Estado Novo sobre a função social da mulher. A Constituição de 1933, ao abordar a situação da mulher, sublinhava que esta devia ser afastada do trabalho fora do lar uma vez que esta situação levava à desagregação da família. (Pimentel, p. 55). O verdadeiro trabalho da mulher era em casa, mantendo a união da família e promovendo a educação dos filhos. Estas ideias eram apoiadas e valorizadas pelas organizações femininas católicas da época que lutavam pelo reconhecimento social da maternidade e do trabalho doméstico, contra o trabalho feminino fabril (id, p. 56).

Nesta linha de pensamento o exercício de várias profissões foi impedido, nomeadamente o acesso à carreira diplomática e ao Ministério das Obras Públicas e Comunicações, ou dificultado como no caso das professoras primárias (tinham de pedir autorização para se casarem e era favorecido o casamento dentro da mesma classe). As telefonistas da Anglo-Portuguese Telephone Company, o pessoal feminino do Ministério dos Negócios Estrangeiros, as hospedeiras de ar da TAP e as enfermeiras dos Hospitais Civis estavam impedidas de casar (Pimentel, p.60).

Assim o movimento gerado por Isaura Borges Coelho foi visto pelo regime como uma afronta às suas leis e como uma questão política e social profundamente perigosa.

Isaura Borges Coelho teve Maria Lamas e Maria Isabel Aboim Inglez como testemunhas de defesa e a enfermeira Hortênsia da Silva Campos Lima, sua irmã, foi igualmente presa em Caxias por estar envolvida na luta contra o celibato destas profissionais de saúde dos Hospitais Civis (Tavares, p. 96).

“A Maria Lamas foi minha testemunha. Fez uma defesa brilhante, pois ela esteve sempre na vanguarda da defesa de todos os problemas das mulheres portuguesas. A dra Aboim Inglês, ao depor em minha defesa, foi presa em pelo tribunal.”8.

Maria da Conceição Vassalo e Silva da Cunha Lamas, conhecida como Maria Lamas, era jornalista e escritora, diretora da revista «Modas e Bordados» desde 1938 e de que se demitiu para presidir ao Conselho Nacional das Mulheres Portuguesas em 1945, esteve várias vezes presa em Caxias entre 1949 e 1953; era conhecida como ativista pela paz e pelos direitos das mulheres, defensora da presença das mulheres no espaço público.

Maria Isabel Saavedra Hahnemann de Aboim Inglês era licenciada em Histórico-Filosóficas, tinha sido professora e diretora do colégio Fernão de Magalhães, tendo-se tornado em 1945, membro da comissão central do Movimento de Unidade Democrática. Foi presa pela PIDE em 1946 na sequência de um abaixo-assinado contra a admissão de Portugal na ONU – depois do encerramento do seu colégio e “de ser impedida pelo regime de lecionar no ensino particular e oficial, tentou ir para o Brasil (…) mas também disso foi impedida restando-lhe montar um atelier de costura com o qual sobreviveu com muitas dificuldades.”9 (Pimentel, 1997, p.409). No julgamento de Borges Coelho, Aboim Inglês protestou por se encontrarem agentes da PIDE na sala de audiências e das testemunhas, pelo que o juiz Abreu de Mesquita a condenou a três dias de prisão, por falta de respeito ao tribunal.

Na sua narrativa, Isaura Borges Coelho continuou: “O juiz era o Abreu Mesquita e o procurador-geral era o dr. Furtado dos Santos que, por acaso, apesar do 25 de Abril, ainda está no Supremo Tribunal. Este disse que pedia pena maior para mim, não por ter provas, mas por convicção. Isto consta tudo do meu processo”. Assim, foi julgada em plenário a 15 de julho de 1954 e condenada, considerando a própria que “ficou tudo espantado, porque até aí muito poucas mulheres tinham sido condenadas por política, ainda por cima inocentes, como era o meu caso.”10

De acordo com um inquérito “realizado pela Inspeção da Assistência Social, o pessoal feminino de enfermagem dos hospitais civis, impedido de contrair matrimónio desde 1942, concluiu que «a proibição matrimonial era desrespeitada» e que, mesmo assim, havia nos hospitais um défice de enfermeiras que «por razões psicológicas» não optavam pela carreira hospitalar.” (Pimentel & Pereira de Melo, 2015).

No folheto “Repressão, Libertemos Isaura Silva”, datado de 16 de maio de 1954, pode ler-se: “A jovem enfermeira dos hospitais civis de Lisboa, Isaura Silva – que há seis meses se encontra num isolamento contínuo onde a sua saúde está em perigo com a má alimentação, a falta de assistência médica, recusando-lhe por vezes a visita de um médico particular -. Acaba de ser alvo de mais um atentado contra as liberdades democrática. A PIDE forjou um processo contra esta dedicada enfermeira, cuja prisão levantou grandes manifestações de solidariedade (…) Lutar pela libertação de Isaura Silva é lutar pela nossa liberdade” (Arquivo de História Social, Espólio Pinto Quantin, Item 171)11.

Sofrendo de depressão e magreza extrema, Isaura foi internada no Hospital de Santa Maria diversas vezes entre setembro de 1955 e janeiro de 1956. Não obstante Ducla Soares recomendar à PIDE a sua libertação, voltou para Caxias, onde veio a constatar que o seu noivo, com quem tivera casamento marcado a 28 de novembro, mês em que fora presa, estava agora detido na cela ao lado.

Na prisão, no período entre 1954 e 1956, foi punida com dias de prisão em cela disciplinar a pão e água (por se ter dirigido por escrito ao Diretor da prisão, em manifestação coletiva), um mês de suspensão de visitas por indisciplina e insubordinação, dois meses em cela disciplinar (por “ter arrombado a porta da sala onde estavam alojadas, insubordinando, causando alarido e escândalo”), um mês sem visitas, isto em acumulação à pena, que era interrompida por cada punição.

“Restituída à liberdade condicional a 20 de fevereiro de 1957”12 e à liberdade definitiva dez anos mais tarde.

Casou a 4 de janeiro de 1959, com o historiador António Borges Coelho, no Forte de Peniche, onde este estava preso e de onde saiu em libertação condicional a 22 de maio de 1962.

Depois de sair da prisão, Isaura Borges Coelho esteve um ano com residência fixa em Portimão, com obrigação de apresentação mensal à PIDE. Após este período, e em Lisboa, começou a trabalhar como voluntária no IPO. Seguiu-se um curto período de 6 meses na Liga dos Amigos dos Hospitais de onde foi expulsa quando se soube do seu passado político.

Conseguiu alguma estabilidade profissional, com a ajuda de Pulido Valente e a contratação por Pedro Monjardino13, trabalhando na clínica particular Pro-Matre14, até 1965. Fez o Curso de Enfermeiras Parteiras Puericultoras do Instituto Maternal15 e conseguiu ser admitida como enfermeira eventual na Maternidade Alfredo da Costa em 1965.

Foi reintegrada na função pública em 1975 e manteve-se na MAC, passando de enfermeira de 2ª classe a 1ª e progredindo para enfermeira-chefe, tendo tomado posse em 1979. Em 1980, fez o Curso de Especialização em Enfermagem de Saúde Infantil e Pediátrica. Exerceu, até à reforma, o cargo de enfermeira-chefe do Serviço de Prematuros16 da Maternidade Alfredo da Costa, onde foi igualmente delegada sindical do Sindicato dos Enfermeiros da Zona Sul, depois (em 1988) Sindicato dos Enfermeiros Portugueses.

Os relatos de amigos retratam-na como uma pessoa corajosa, com uma enorme alegria de viver, generosa e que nunca perdeu a vontade de lutar.

Foi condecorada pelo presidente Jorge Sampaio, com a Ordem da Liberdade, grau de comendador, por alvará de 8 de março de 2002. A Ordem da Liberdade “destina-se a distinguir serviços relevantes prestados em defesa dos valores da Civilização, em prol da dignificação da Pessoa Humana e à causa da Liberdade”.

Recebeu a medalha de honra do Município de Portimão e o título de cidadã benemérita em 2018. A sua história e a da irmã foram contadas, com memórias, imagens e documentos da época, num filme de Susana de Sousa Dias, “Enfermeiras do Estado Novo”(2000).

1 Estudo biográfico realizado entre novembro de 2021 e janeiro de 2022. Publicação no site da Sociedade Portuguesa de História de Enfermagem, novembro de 2022.

2 Fontes das fotos: (1) foto da esquerda, em artigo “Isaura Borges Coelho”, assinado por Helena Pato, Jornal Tornado, 25 de junho de 2019, em https://www.jornaltornado.pt/isaura-borges-coelho/ (2) artigo “Morreu Isaura Borges Coelho, antifascista que lutou pelo direito das enfermeiras ao casamento”, assinado por Patrícia Carvalho, em Jornal Público, 12 de Junho de 2019, em https://www.publico.pt/2019/06/12/sociedade/noticia/morreu-isaura-borges-coelho-antifascista-lutou-direito-enfermeiras-poderem-casar-1876235

3 Conforme registo do processo (nº 21365) Cf. http://digitarq.arquivos.pt/viewer?id=4301903

4 “Quando um deles me viu e me reconheceu, das minhas andanças da recolha das assinaturas contra a proibição do casamento das enfermeiras, exclamou: Ora cá está a casamenteira!” Nobre de Melo, R.N. (1975). “Isaura Assunção da Silva” in Mulheres portuguesas na resistência. Seara Nova. p. 126.

5 Idem, p. 126.

6 Conforme processo nº 21365. http://digitarq.arquivos.pt/viewer?id=4301903

7 Idem, p. 127-133.

8 Idem, p. 129.

9 Pimentel, I. (1997). Contributos para a história das mulheres no Estado Novo : as organizações femininas do Estado Novo : a “Obra das Mães pela Educação Nacional” e a “Mocidade Portuguesa Feminina” : 1936-1966. Mestrado em História Contemporânea. P. 409

10 Idem, p. 129-130.

11 MUD Juvenil – Movimento de Unidade Democrática Juvenil. http://www.ahsocial.ics.ulisboa.pt/atom/repressao-libertemos-isaura-silva-comissao-concelhia-de-lisboa-do-movimento-de-unidade-democratica-juvenil

12 Nobre de Melo, R.N. (1975). “Isaura Conceição da Silva” in Mulheres portuguesas na resistência. Seara Nova. p.132.

13 Isaura Borges Coelho. Mulheres Enfermeiras que fazem história (entrevista). (1994). Revista Enfermagem em Foco (IV), nº 14, p. 31

14 A Clínica Pro-Matre, localizada na Avenida da República, 18, à esquina com a Avenida João Crisóstomo, num edifício que foi demolido em 1974, era propriedade do médico obstetra Pedro Monjardino, filho de Augusto Monjardino, primeiro diretor da Maternidade Alfredo da Costa (inaugurada em 1932). Pedro Monjardino introduziu, nos anos 60, o método do «parto sem dor». Cf. Pessoa, A. (2005). A Educação das Mães e das Crianças no Estado Novo: a proposta de Maria Lúcia Vassalo Namorado. Tese de doutoramento em Ciências da Educação. UL. Vol. 2, p. 992-994. Disponível em https://repositorio.ul.pt/handle/10451/2016

15 O Instituto Maternal, criado pelo Decreto nº 32 651 de 2 de fevereiro de 1943, tinha sede na Maternidade Alfredo da Costa e delegações previstas no Porto e em Coimbra. Cf. https://files.dre.pt/1s/1943/02/02600/00770080.pdf. Nos primeiros anos de funcionamento pretendeu formar enfermeiras puericultoras mas a partir de 1952 a oferta do curso de enfermeira puericultora passou a ser realizado para quem tinha o curso de enfermagem geral. Cf. Carneiro, M. (2004). Ajudar a nascer: parteiras, saberes obstétricos e modelos de formação: séculos XV-XX. Teses de doutoramento. https://repositorio-aberto.up.pt/handle/10216/108390

16 O Serviço de Prematuros foi aberto em 1957, pelo médico Rosa Paixão e a enfermeira Teresa Leça da Veiga. Cf. Tanganho, C. & Costa, M.T. (2004), Assistência Neonatal na Maternidade Dr. Alfredo da Costa: a História de um Percurso. Arq Mat Alfredo da Costa, 15 (1): 50-56. Disponível em http://hdl.handle.net/10400.17/606