Permanece a memória e o exemplo de uma enfermeira e cidadã que marcou indelevelmente a enfermagem e a sociedade portuguesa contemporânea

NÍDIA RODRIGUES MENDES SALGUEIRO

Escola de Enfermagem Ângelo da Fonseca, CEG, 1955. Enfermeira estagiária no serviço de Psiquiatria dos HUC, em agosto de 1955. Curso de Enfermagem Complementar: Secção Ensino, Secção Administração em 1957. Casou em 1959, mas manteve o estado civil de solteira para continuar o exercício hospitalar. Em 1962, iniciou funções na Escola de Enfermagem Dr. Ângelo da Fonseca, como Enf. Encarregada de Enfermaria Escola. Em 1976, Comissão Instaladora e de Gestão da EEAF. Enfermeira Professora em 1982. Curso de Especialização em Enfermagem Médico-Cirúrgica, 1986. Sócia-fundadora e presidente da Associação de Enfermeiros Especialistas em Enfermagem Médico-Cirúrgica, criada em 1988. Aposentada em 1993. Medalha de Serviços Distintos, Grau Prata, do Ministério da Saúde, em 2007; Sócia honorária da Ordem dos Enfermeiros, 2007; Medalha de Ouro de Conhecimento e Mérito: Sapientia, Sciencia, Praxis, Ethica, da Escola Superior de Enfermagem de Coimbra, em 2014; Homenagem da Fundação da Saúde, SNS, em 2018.

Selecionar umas quantas experiências de vida permitiu-me lançar um olhar retrospetivo para o meu percurso profissional de 66 anos. Apesar de ter atravessado períodos difíceis, de grande escassez de meios, brotou um enorme sentimento de gratidão. Gratidão pelas diversificadas e ricas experiências humanas que o exercício hospitalar e de docência me permitiram, por, apesar de me serem atribuídas funções de chefia a partir dos 22 anos, as ter exercido com discernimento, com equilíbrio entre a firmeza e a flexibilidade, não me deixando empolgar pelos cargos.
Nasci a 25 de Abril de 1934, no lugar de Vila Seca, concelho de Condeixa-a-Nova, distrito de Coimbra. Tive uma infância marcada pelo trabalho visto que, naquele tempo, era preciso ajudar nas tarefas domésticas, mas não só: também ajudava o meu pai na sua atividade profissional.
Escolher a profissão de enfermagem não se deveu a nenhum chamamento interior, mas foi a forma de seguir um caminho diferente do da maior parte das outras raparigas, a costura e a preparação para a vida doméstica.
Concluí o Curso de Enfermagem Geral (CEG) em julho de 1955, após Exames de Estado e este foi o primeiro CEG de três anos (Decreto-Lei nº. 38884, de 28 de agosto de 1952), há 66 anos. Se lhe acrescentar os 3 anos de curso e ainda os dois do Curso de Pré-Enfermagem, poderei dizer que as minhas memórias e histórias foram construídas, ou melhor, vividas ao longo de mais de 70 anos. Como período histórico é curto, mas em termos das conquistas técnico-científicas postas à disposição dos profissionais de saúde, assim como em relação às condições sociais atuais, é enorme, apesar da atual conjuntura de pandemia.
Iniciei a minha vida profissional no serviço de psiquiatria dos HUC tendo realizado o mês de estágio obrigatório nesse serviço. Logo de seguida, com 22 anos, fui chefiar o Serviço de Dermatologia e Venereologia. Algumas das particularidades deste serviço onde eram tratadas as prostitutas em situação de prisão e, sobretudo, a situação de uma doente em estado grave e muito malcuidada, fizeram-me compreender a essência do cuidar, e decidi, definitivamente, que a enfermagem era o meu caminho. Encontrei aí a essência de uma profissão que oferece oportunidades únicas de autoaprendizagem, de desenvolvimento humano e espiritual, de sentido e valorização da sua própria existência.
Tive oportunidade, nos serviços que chefiei e nas rondas hospitalares nos HUC – por escala das 20 às 8 horas do dia seguinte – de adquirir um diversificado leque de experiências profissionais que me foram muito úteis na docência e de colaborar em estudos científicos médicos, num tempo em que a investigação em enfermagem era ainda uma miragem. Estas experiências deram-me uma noção muito clara da importância do rigor em investigação e do hábito de um permanente questionamento. Das muitas experiências significativas destaco o acompanhamento de pessoas em fim de vida, em agonia, numa perspetiva de proporcionar um ambiente de serenidade, de apaziguar a passagem, vivendo situações muito diversificadas e que jamais esquecerei.
Em 1959 casei, numa altura em que às enfermeiras não era permitido casar. Mantive o estado civil de solteira para poder continuar o exercício hospitalar. Fui mãe de três filhos, um deles com necessidades especiais. Foi um período muito desafiante: ser mãe, chefiar um serviço e ser oficialmente solteira num meio tradicionalmente católico.
Para legitimar a situação de ser solteira sendo casada, fiz os concursos para auxiliar de monitora e, depois, para Enfermeira Encarregada de Enfermaria Escola, tendo sido empossada nessas funções em 1962, na Escola de Enfermagem Dr. Ângelo da Fonseca. Em 1967, foi publicada legislação onde estavam definidas as três carreiras de enfermagem: hospitalar, ensino e saúde pública. Nessa circunstancia, deixando de existir as enfermarias escola, passei efetivamente para a docência. Na bagagem, levava belas, interessantes e gratificantes experiências: a noção da exigência e do rigor na investigação, na investigação clínica, o hábito de questionamento permanente que me foi muito útil na docência e em relação à investigação em enfermagem; também uma abertura de espírito que não teria se não tivesse o exercício hospitalar, que me permitiu tantos e tão variados contactos humanos!
No exercício da docência, tive oportunidade de lecionar um elevado número de disciplinas de Enfermagem e conexas, como a Medicina, por proposta do Professor José de Freitas Tavares, titular da mesma, com quem tinha trabalhado e, por arraste, a Patologia Geral, dada a minha experiência hospitalar. Fui responsável/coordenadora dos vários períodos/áreas do Curso de Base, do Curso de Especialização de Enfermagem Médico-Cirúrgica e do Curso de Administração de Serviços de Enfermagem, fui membro das Comissões Instaladora e de Gestão da EEAF (dois mandatos), bem como do Conselho Científico-Pedagógico.
Envolvi-me em projetos que considerei muito interessantes tais como despertar os alunos para os aspetos culturais, em atividades circum-escolares, introduzir a natação, ginástica e judo na Escola; responsabilizei-me pelos exames de saúde das crianças nas Escolas de Natação, realizados pelos alunos da EEAF sob minha orientação e colaborei na organização de imensas atividades realizadas pela Delegação do Centro da Direção Geral dos Desportos, com vista à manutenção da saúde na população em geral e prevenção de doenças cardiovasculares e outras, de pessoas em risco, colaborei no lançamento do Desporto para Todos e dos Caminheiros, tendo sido criada a Associação do Desporto para Todos, tendo integrado os seus corpos gerentes. Decorrente do Desporto para Todos realizei um programa com doentes dos Serviços de Psiquiatria dos HUC.
Numa época em que os eventos científicos e encontros profissionais eram escassos, durante a minha gestão, a EEAF promoveu uma série de atividades de partilha de saberes (jornadas e outros), bem como de intercâmbios Internacionais e de abertura da Escola à comunidade.
O meu trabalho foi sempre reconhecido, como atestam as declarações escritas dos Diretores de Serviços que chefiei, Prof. Doutor Augusto Vaz Serra e Prof. Doutor Francisco Ibérico Nogueira, onde não foi esquecida a minha colaboração em estudos científicos, e do Prof. Doutor Adriano Supardo Vaz Serra em relação às atividades físicas e outras desenvolvidas durante cerca de 4 anos nos seus serviços, mas também o voto de louvor da Associação de Alunos à Comissão Instaladora da EEAF da qual era membro em representação do sector docente, tornado público no encerramento das Comemorações do Centenário: «À Enfermeira Nídia Salgueiro, pelo trabalho, dedicação e dignificação da Enfermagem». No seu Centenário, a EEAF foi agraciada com duas Medalhas de Ouro: do Ministério dos Assuntos Sociais e da Câmara Municipal de Coimbra. Foi também considerada Instituição de Mérito Desportivo pela DGD, pelas atividades desenvolvidas. Também a Senhora D. Naldi Claro Castelo Branco, Chefe dos Serviços Administrativos, primeira funcionária do quadro de pessoal da EEAF foi agraciada com Medalha do Ministério de Serviços Distintos (Grau prata).
Com outros colegas criei a Associação de Enfermeiros Especialistas em Enfermagem Médico-Cirúrgica .Cirúrgica. Enquanto presidente da direção, desenvolvi intensa atividade de formação, inclusive a realização de dois congressos internacionais de Enfermagem Médico-Cirúrgica, um curso de Investigação, tendo como formadora Monique Formarier, Presidente da Association de Recherche en Soins Infirmiers e da revista Reserche em Soins Infirmiers.
Em 2005, através de Phaneuf, tive contacto com a Filosofia da Humanitude e a Metodologia de Cuidado Gineste-Marescotti, e envolvi-me na criação do Instituto e da sua divulgação em Portugal. A minha enorme gratidão a Yves Gineste e a Rosette Marescotti!
Traduzi, entre muitas outras, obras técnico-científicas da autoria de Margot Phaneuf e Fabienne Fortin e uma enorme quantidade de documentos de apoio a conferências e programas de formação, alguns publicados, o que constituiu uma ótima oportunidade de enriquecimento pessoal e profissional. Igualmente a de participar como oradora, coordenadora, presidente de comissões científicas e de júris de concursos para atribuição de prémios em trabalhos apresentados em eventos científicos e de publicar trabalhos pessoais.
Aposentei-me em 1993/10/15. Depois de aposentada ainda continuei a dar o meu contributo à Escola até a legislação não o permitir mais. Fiquei mais livre para outras experiências…
O que mais me agrada salientar é que as atividades profissionais me permitiram adquirir uma certa serenidade. Talvez, a serenidade própria das pessoas que fizeram o máximo que puderam, tendo em conta as suas potencialidades, os recursos disponíveis e os contextos profissionais e políticos vigentes nas várias etapas do seu percurso profissional.

In: Sociedade Portuguesa de História da Enfermagem (2021). 25 Anos de Regulação na Enfermagem, 96 Perfis e Trajetórias Assinaláveis. SPHE