7 janeiro, 2020
Escola Superior de Enfermagem de Coimbra
abertura das comemorações do “Ano Internacional do Enfermeiro” e do “Bicentenário do nascimento de Florence Nightingale”
Conferência proferida por Carlos Louzada Subtil
6 breves notas a propósito de Florence Nightingale
ou
Partitura a Florence Nightingale em 6 andamentos
Da biografia de Florence Nightingale (FN) e da leitura da sua principal obra publicada, gostaria de partilhar convosco algumas reflexões.
Os 2 primeiros andamentos para realçar a memória e a história como elementos estruturantes da identidade profissional. O terceiro e quarto para falar sobre a desconstrução de mitos e estereótipos sobre Nightingale e, os dois últimos para conjugar o passado com o presente e o futuro, inspirado no soneto de Luís de Camões:
Mudam-se os tempos, mudam-se as vontades
Muda-se o ser, muda-se a confiança
Todo o mundo é composto de mudança
Tomando sempre novas qualidades
1. PARA QUE SERVE A MEMÓRIA?
Recordar, comemorar é o que estamos a fazer hoje, de forma deliberada e com um propósito, isto é, não o fazemos de forma passiva e a-critica (protomemória).
Recordação e reconhecimento de uma personalidade que (re)presenta um passado histórico individual e coletivo, passado esse que está sujeito a algumas contingências, ao esquecimento e a subjetividades, a mitos e estereótipos, a narrativas apenas de caracter simbólico e imagético e a iniciativas mediadas por instâncias de poder.
2. COMEMORAR É TRAZER À MEMÓRIA, É LEMBRAR, É POR LEMBRANÇAS EM COMUM.
As liturgias da comemoração têm por função inserir as pessoas, neste caso os profissionais, numa cadeia de filiação identitária e de lhes dar sentido de pertença através de elementos identitários socioprofissionais que lhe conferem uma identidade PARA SI, uma identidade de grupo, uma identidade de si para si, endógena.
Numa palavra, somos aquilo que achamos de nós próprios e isso confere-nos alguma proteção exógena.
Mas, como se sabe, este processo identitário joga-se num espaço de interação social e, por isso, a construção da identidade é um processo complexo que também envolve a representação que os outros fazem de nós, isto é, uma identidade DE SI.
Este jogo entre a Identidade DE SI e a Identidade Para SI pode criar tensão, conflitos e frustração.
Vejamos o caso mais recente.
2020, o ano que agora iniciamos, foi eleito pela OMS como o ANO INTERNACIONAL DO ENFERMEIRO E DA PARTEIRA.
O Diretor-Geral da OMS acaba de declarar – com certeza, não o faz por simpatia, di-lo com o sentido de uma estratégia global para a promoção da saúde – que os enfermeiros e as parteiras são a ESPINHA DORSAL de TODOS os sistemas de saúde, convidando todos os países a investir em enfermeiros e parteiras como parte do seu compromisso com a SPT.
Todavia, o Estado Português, as políticas de saúde, as estratégias de recursos humanos refletidas no Orçamento de Estado que está a ser discutido para aprovação, a forma como os nossos pares e alguns setores da sociedade estão desalinhadas com a forma como a OMS acredita no papel dos enfermeiros no desenvolvimento da saúde não apenas nos países em desenvolvimento, mas em todo o mundo.
Este é um tópico que vos deixo para reflexão e ao qual vou voltar mais à frente.
3. MENOS ICONOGRAFIA
Sobre FN têm sido produzidas narrativas, sobretudo de carater simbólico e imagético, que não são compatíveis com a necessidade do rigor historiográfico.
FN é frequentemente apresentada e está no imaginário coletivo como um ícone: a mulher da candeia, a enfermeira da Guerra da Crimeia ou a fundadora da “enfermagem moderna”, expressão de sentido ambíguo e impreciso porque, historicamente, há a Idade Moderna e a Idade Contemporânea, datadas no tempo cronológico. As etapas de desenvolvimento da enfermagem têm de ser vistas à luz de outros marcadores situados nesse tempo histórico.
Estas representações estereotipadas – criadas por outros e alimentadas por alguns de nós – não convêm à História da Enfermagem nem à História das Mulheres.
Enquanto se construiu o mito, mantiveram-se no anonimato ou submersas enfermeiros e enfermeiras que desempenharam um trabalho extraordinário na assistência ao parto, às crianças, aos doentes, aos idosos, aos pobres e aos feridos, nos mais diversos contextos: no hospital, no domicílio ou em cenários de guerra, etc.
Coeva de FN foi Edith Cavell (1865-1915) fuzilada pelos alemães na I Grande Guerra Mundial.
Coeva de FN foi Ana Guedes da Costa que tem uma biografia de grande mérito e reconhecimento na sociedade portuguesa.
Em Portugal, nascida no princípio da segunda década do seculo XX, pode falar-se da Enfermeira Palmira Tito de Morais, uma das primeiras mulheres licenciadas em Enfermagem e em Ciências Históricas e Filosóficas, mestre em Sociologia, Filosofia, Psicologia Social e Antropologia, consultora da OMS e da OIT, fundadora do 1º. Centro de Saúde em Portugal (1940) e presa e torturada durante a ditadura. Também se deve referir Maria Inês Stilwell, Emília da Costa Macedo e tantas outras enfermeiras que criaram as primeiras escolas de enfermagem e as primeiras organizações profissionais, a Liga das Mulheres Portuguesas na 1ª. Grande Guerra ou as Damas Enfermeiras da Cruz Vermelha Portuguesa.
Com certeza que FN foi uma figura grande, mas, tal como ela, muitas outras, em Portugal, em Espanha, no Brasil, nos EU e na Europa tiveram papel de relevo no desenvolvimento da profissão.
A exaltação mítica de FN, como disse, não serve a História da Enfermagem, não pode nem deve ofuscar outras personalidades grandes da enfermagem.
4. PARA A IDENTIDADE PROFISSIONAL É PRECISA MAIS HISTÓRIA
Contextualizemos. FN, filha de uma família tradicional e rica, viveu em plena época vitoriana, no período de florescimento da Revolução Industrial, de grandes desenvolvimentos na saúde e na medicina, com novas perspetivas sobre a higiene e a saúde pública, a saúde mental, a medicina legal, a anestesiologia e a estatística aplicada à saúde e, de uma forma geral, de todas as ciências.
Com a possibilidade de aceder a esse conhecimento, com a possibilidade de aceder ao poder político que lhe era permitido pela sua condição social, independentemente das motivações para se tornar enfermeira, estavam criadas as condições para poder levar por diante os seus projetos.
Na sua biografia, também não devem ser omissos outros aspetos da sua personalidade, pensamento e ação, nomeadamente a controvérsia que gerou em algumas outras enfermeiras acerca da sua visão sobre as questões de género e da autonomia das mulheres.
5. PRINCIPAIS LEGADOS DE FN
FN deve ser comemorada como uma enfermeira que inaugurou uma nova etapa no desenvolvimento da profissão, que beneficiou e soube aplicar à enfermagem o novo conhecimento que estava a ser produzido, assim como, mais tarde o fizeram as enfermeiras que representam a primeira geração de teorias e modelos de enfermagem (Virgínia Henderson, Hildegard Peplau, Dorothea Orem, Callistra Roy ou Betty Neuman).
Prefiro fixar-me no seu legado que ainda hoje é atual e que, na altura, incidiu em 3 áreas que têm sido pouco valorizadas, mas que se devem manter na agenda das atuais e futuras gerações de enfermeiros: a formação, hoje com novas questões, as condições de trabalho dos enfermeiros, um problema principal e o papel dos enfermeiros nos sistemas de saúde, na promoção da saúde e nos CSP.
6. DESAFIOS PARA O PRESENTE E O FUTURO
Para além das questões que acabei de enunciar, quero, para terminar, referir-me a uma dimensão pouco enfatizada e até ignorada na biografia de FN: a sua SAGACIDADE política, a que hoje chamamos competência política e que é uma dimensão a desenvolver.
Sobre este assunto, devo dizer que esta dimensão sempre foi sufocada pelos regimes de ditadura, pelo que conheço de Portugal, Espanha e outros países da América Latina. Mas também é preciso denunciar que, em regimes democráticos, há sinais discretos e ardilosos nos discursos e práticas políticas que convém desmontar, como os que recentemente ouvimos a propósito do Ano Internacional do Enfermeiro e da Parteira.
Para além das competências técnico-científicas e relacionais, o enfermeiro deve desenvolver a capacidade para influenciar a tomada de decisão política a nível micro, médio e macro, no que se refere às políticas de saúde, competência que, aliás, decorre do seu compromisso social.
Esta competência inclui várias áreas, a saber: a relação com os vários poderes dentro da própria profissão (hierarquias no local de trabalho, sindicatos e OE, a relação com o conhecimento e a informação, a relação com os pares e os outros profissionais da saúde, a relação com as ideologias, os poderes político e religioso e com a informática e a tecnologia (robótica e inteligência artificial).