20 novembro, 2020
Escola Superior de Enfermagem de Coimbra
promovida pela ESEC, ANHE e SPHE
Conferência proferida por Carlos Louzada Subtil
CONTRIBUTOS DA HISTÓRIA DA ENFERMAGEM PARA A ENFERMAGEM ATUAL
A História é um diálogo interminável entre o presente e o passado
E. H. Carr, What is History?
A incompreensão do presente nasce fatalmente da ignorância do passado. Mas talvez não seja mais útil esforçarmo-nos por compreender o passado, se nada sabemos do presente
Marc Bloch – Introdução à História
Estamos a comemorar o Ano Internacional do Enfermeiro e da Parteira e o bicentenário do nascimento de Florence Nightingale que motivou a realização do seminário de Janeiro e deste simpósio tendo como pano de fundo a vida e obra de Nightingale, o desenvolvimento e a atualidade da Enfermagem.
Por isso, a primeira parte daquilo que gostaria de partilhar convosco é destinada a realçar a importância da História, na linha de pensamento de Edward Carr – A História é um diálogo interminável entre o presente e o passado – e de Marc Bloch que nos confronta com duas questões incontornáveis: “A incompreensão do presente nasce fatalmente da ignorância do passado mas de nada vale querer compreender o passado se não conhecemos o presente.
Na segunda parte, pretendo fazer um exercício simples de interpretação do momento atual da enfermagem, com base no modelo de análise SWAT muito utilizado em gestão empresarial.
1 QUATRO NOTAS SOBRE HISTÓRIA DA ENFERMAGEM
1.1 De que forma a história e as comemorações servem a enfermagem?
Torno presente o tema que introduzi no seminário de Janeiro a propósito das comemorações.
As comemorações servem exatamente para legitimar o presente e construir o futuro, têm a virtude de lembrar, de trazer à memória os atores, os espaços e as circunstancias em que se produziram os acontecimentos que estão na génese do momento presente e permitem abrir novos horizontes e perspetivas.
As liturgias da comemoração também têm por função inserir as pessoas numa cadeia de filiação identitária e de lhes dar sentido de pertença através de elementos identitários socioprofissionais que lhe conferem uma identidade PARA SI, isto é, uma identidade de grupo, uma identidade de si para si, uma identidade endógena. Numa palavra, somos aquilo que achamos de nós próprios e isso confere-nos alguma proteção exógena.
Mas, como se sabe, este processo identitário joga-se num espaço de interação social e, por isso, a construção da identidade é um processo complexo que também envolve a representação que os outros fazem de nós, isto é, uma identidade DE SI.
Este jogo entre a identidade DE SI e a identidade PARA SI pode criar tensão, conflitos e frustração.
É por isso que a História é um pilar fundamental da Enfermagem como, aliás, das outras áreas do a conhecimento em saúde, o que equivale dizer que todo o conhecimento possui uma dimensão histórica e que tem de ser escrita com rigor, verdade e isenta de erros.
A compreensão dos cuidados de enfermagem no presente e a sua projeção no futuro, implicam a compreensão da multidimensionalidade do ser humano, a complexidade dos processos de saúde e de doença e as dinâmicas profissionais, na sua dimensão sincrónica mas também num eixo diacrónico ou temporal.
Neste sentido, é necessário convocar a História, compreender para que serve a História, tomar em conta os fatores sociais, políticos, económicos e culturais que influenciaram os acontecimentos, compreender que a História e as memórias não são assépticas nem neutras e que se inscrevem em ideologias.
A História da Saúde incide invariavelmente em cinco domínios: i) institucional (hospitais, centros de saúde, misericórdias); ii) discursivo (narrativas, normas e regulamentos); iii) doutrinário (ideias e imagens sociais); iv) político (poderes e relação de poder) e v) governativo (estruturas administrativas e seus recursos).
São manifestas as dificuldades em fazer história porque a história não é uma ciência dedutiva, não se deduz o passado do presente, não se deduz da história dos outros, a nossa história. Também não é uma ciência em que a explicação se insinue na relação de causa e efeito. O campo empírico da história é já, em si mesmo, um campo epistemológico. Paradoxalmente, apesar das dificuldades em fazer história, a produção tem sido abundante porque o discurso historiográfico é facilmente confiscado por narrativas que amiúde são resistentes ao verdadeiro e ao falso.
1.2 A historiografia da enfermagem
Há ainda uma noção restritiva e limitada que paira sobre a História da Enfermagem sendo preciso redimensionar o seu uso tanto nos processos de formação e orientação profissional como na prática de Enfermagem, na medida em que a sua efetividade desfaz mitos, intolerâncias e preconceitos os quais, muitas vezes, obstruem a eficácia dos cuidados e desarticulam as equipas de saúde ao fabricarem conflitos em ambientes de trabalho cada vez mais complexos.
A História da Enfermagem possibilita a interpretação e compreensão do passado da enfermagem no longo tempo da sua história, visto pela lente da antropologia dos cuidados e pela lente dos estudos históricos fundados na história social, isto é, segundo duas orientações distintas, uma abordagem antropológica dos cuidados relacionados com a manutenção da vida, na linha da análise empreendida por Marie Françoise Collière e uma abordagem com uma orientação mais sociológica, relacionada com os processos de construção da enfermagem como profissão.
Duas notas sobre estas duas dimensões.
A primeira para referir um incidente entre a antropóloga Margaret Mead e um seu aluno que a interpelou sobre qual teria sido o primeiro sinal de civilização, na expectativa que a mestre lhe anunciasse um qualquer artefacto. Margaret Mead respondeu-lhe que o primeiro sinal de civilização tinha sido a evidência de alguém com uma fratura do fémur cicatrizada explicando-lhe que nenhum animal sobreviria o tempo suficiente para que o osso cicatrizasse se não tivesse havido “alguém” que empregasse tempo para “cuidar” de quem não podia cuidar de si. – Ajudar alguém durante a dificuldade é onde a civilização começa – disse-lhe Margaret Mead. Nada mais esclarecedor sobre as origens dos cuidados de enfermagem.
Quanto à dimensão socioprofissional, o último quartel tem sido fértil na produção de conhecimento em história da enfermagem portuguesa, na linha de continuidade dos estudos sobre o género e as mulheres, sobre a vida privada e familiar, sobre os grupos profissionais e as pessoas a quem a historiografia tradicional não tinha dado voz.
Este novo interesse, a par do interesse na epistemologia e na filosofia dos cuidados, não surgiu do acaso nem foi uma moda mimética. Segundo Noémia Lopes, surgiu como um imperativo do tempo presente, para dar sentido e fortalecer o processo de recomposição dos saberes, das ideologias e das identidades da enfermagem portuguesa face às mudanças que estavam a ocorrer no campo da saúde, nomeadamente na crescente especialização da produção de cuidados e a multiplicação de modelos terapêuticos em que a enfase na prevenção se tornou dominante.
Esta mudança de paradigma adivinhava-se no poema “Perguntas de um operário letrado” do dramaturgo, poeta e encenador alemão Bertolt Brecht (1898-1956).
O incremento da história da enfermagem está evidenciado no recente trabalho de Lucília Nunes “Bibliografia dos estudos de História da Enfermagem em Portugal: anotações e análises” em que faz o levantamento bibliográfico dos estudos de História da Enfermagem em Portugal (1993-2018), no âmbito académico. Dos 349 documentos compulsados, constam 16 teses de doutoramento, 10 dissertações de mestrado, 36 livros, 7 capítulos em obras coletivas, 115 artigos em revistas e 146 artigos em livros de atas.
Em suma, os cuidados com a vida são inerentes ao ser humano e, por isso, sempre estiveram presentes ao longo da evolução do homem. Também sempre houve pessoas que praticaram cuidados numa dimensão profissional, com múltiplas manifestações condicionadas pelo progresso do conhecimento e pelas mudanças sociais e culturais. O resultado de séculos de evolução na atividade cuidadora é o que hoje se reconhecesse como Enfermagem (…).
Conforme a Declaração de Oseira sobre a importância da História da Enfermagem (2017), o conhecimento da Enfermagem, construído ao longo de séculos de evolução da prática profissional de cuidados, é o principal legado que a Enfermagem, enquanto ciência, dá à Humanidade; por sua vez, a história da enfermagem contribui de forma efetiva para consolidar a identidade profissional, ao clarificar os princípios e valores universais com que as enfermeiras e os enfermeiros têm exercido o seu compromisso com a sociedade, ao longo dos tempos.
1.3 O lugar de Florence Nightingale na história
Em todas as intervenções que tenho feito sobre o bicentenário do nascimento de Florence Nightingale destaquei, entre muitas outras, uma sua qualidade e característica que volto a referir para introduzir o meu pensamento sobre a atualidade da enfermagem. Refiro-me à sagacidade ou perspicácia política que demonstrou, tendo a seu favor, o benefício de pertencer a uma classe social privilegiada, mas contra a desvantagem da sua condição de mulher. Foi neste jogo que Florence Nightingale levou por diante o seu modelo e estratégia de desenvolvimento da profissão. É aquilo a que hoje, no âmbito do quadro de competências pessoais e profissionais, designamos por COMPETÊNCIA POLÍTICA.
1.4 O legado da história mais recente da Enfermagem
Ao referir-me à história mais recente da enfermagem refiro-me à segunda metade do século passado, sobretudo à década de 70 e período subsequente.
Destaco o I Congresso Nacional de Enfermagem, realizado em 1973, sob o patrocínio da ACEPS (Associação Católica dos Profissionais de Enfermagem e Saúde), a Federação Nacional dos Sindicatos Nacionais dos Profissionais de Enfermagem e da APE (Associação Portuguesa de Enfermeiros) cujas conclusões, sintetizadas em 34 pontos, passaram a constituir a agenda para o desenvolvimento da profissão nas próximas décadas.
Apesar das diferenças ideológicas entre as várias organizações e os seus vários líderes (Emília Costa Macedo, Mário Sarmento Rebelo, Teresa Pereira Forjaz, Mariana Dinis de Souza, Maria Fernanda Resende e tantos outros, com uma forte influência de enfermeiros que ocupavam cargos superiores e intermédios da administração pública e dos serviços de saúde e de enfermeiros responsáveis pela formação), o seu mérito consistiu em serem capazes de definir uma agenda comum e mobilizadora, a médio e a longo prazo, aproveitando o momento político do advento da democracia expresso na “reforma Veiga Simão”, que incluía a integração do ensino da enfermagem no Ministério da Educação, ao nível do ensino superior e uma formação integrada com outros profissionais de saúde, a revisão do plano de estudos existente, o desenvolvimento da investigação, ,a articulação dos espaços formativos com a prática clínica, a criação de cursos de especialização, a criação da Ordem, dotações de pessoal para assegurar a qualidade dos cuidados e a melhoria das condições de trabalho, a reorganizar da carreira e maior protagonismo na gestão dos serviços.
Esta agenda viria a ser aprofundada no II Congresso, realizado 8 anos depois, em Coimbra com a presença de cerca de 3500 participantes, num evidente sinal de vitalidade da profissão.
Em suma, os enfermeiros tinham uma agenda com objetivos estratégicos claramente definidos, estavam fortemente mobilizados e tinham uma liderança determinada, isto é, eram líderes com mais política e menos ideologia partidária, menos imediatistas e populistas, com mais sentido estratégico, numa palavra, eram politicamente competentes.
2 O TEMPO PRESENTE
2.1 Tempos de globalização
Estamos na era da globalização cujo impacto também se reflete na profissão de enfermagem.
A definição de objetivos, de guidelines e de padrões de qualidade para a prática profissional, a nível transnacional e transcontinental, são, entre outros sinais, a expressão dum tempo de igualização e de normalização que deve ser relativizado sobretudo por duas razões: para reafirmar as especificidades e a singularidade dos processos e para clarificar o que nos distingue dos outros apesar das semelhanças. Para este propósito, mais uma vez, a história dá um contributo imprescindível.
2.2 2020 – Ano Internacional do Enfermeiro e da Parteira. 40 anos de SNS
O Diretor-Geral da OMS declarou que os enfermeiros e as parteiras são a ESPINHA DORSAL de TODOS os sistemas de saúde, convidando todos os países a investir em enfermeiros e parteiras como parte do seu compromisso com a SPT. Por certo não o faz por simpatia, fê-lo com o sentido de uma estratégia global para a promoção da saúde.
2.3 AMEAÇAS E OPORTUNIDADES, FRAQUEZAS E FORÇAS
2.3.1 AMBIENTE EXTERNO
Ameaças que obstaculizam o desenvolvimento profissional e maior protagonismo dos enfermeiros no SNS
- Persiste por parte do estado uma atitude hipócrita ao negar condições de traba-lho dignas e uma renumeração justa por trás da qual se pode esconder um antigo preconceito de género que vê no trabalho feminino um trabalho menos qualifica-do e no prolongamento das funções domésticas da mulher.
- O modelo de gestão do SNS tem sido posto em causa pelas fragilidades que vem evidenciado e que se agravou na atual situação extraordinária de crise pandémi-ca. Não sendo o momento certo para abordar a sustentabilidade do SNS, não posso evitar a referência a um dos fatores da complexa rede de fatores que con-dicionam o SNS e que é o modelo de gestão que tem sido adotado desde a cria-ção do SNS. O modelo de gestão e os papeis que são atribuídos aos vários agentes e grupos profissionais que fazem parte das estruturas centrais, regionais e locais dos serviços de saúde a nível hospitalar e dos cuidados de saúde primários.
Refiro-me, por exemplo, ao rumo que tomaram os centros de saúde de terceira geração e aos modelos de gestão dos ACES, das ULS, das USF.
A este propósito, convém trazer à liça a posição tomada pela OM sobre a proposta de lei 34/XIII sobre os “atos em saúde” onde se afirma que “a medicina alimenta e gere todas as outras profissões” entre muitas outras afirmações que revelam grosseiros equívocos conceptuais e a apologia de uma hierarquização fundada nas profissões e não na competências.
Oportunidades
- Identidade de si positiva, isto é, perceção favorável da população, dos media (jor-nais notícias, entrevistas, documentários), dos órgãos de poder (nacionais e es-trangeiros) e de instâncias de saúde prestigiadas (OMS- Declaração do Ano Inter-nacional do Enfermeiro e da Parteira).
- a melhoria da saúde das pessoas,
- a promoção da igualdade de género
- a sustentabilidade do desenvolvimento económico das nações.
Não tenho dúvidas que as pessoas e as famílias que precisam ou precisaram de cuidados de enfermagem nas suas situações de saúde e de doença (aguda, grave, crónica ou terminal) têm uma perceção positiva do trabalho e das competências cuidativas do enfermeiro.
Quanto aos órgãos de soberania, parece que, de repente e a propósito da pandemia COVID 19 descobriram os enfermeiros e chegam à conclusão que
“Têm sido a melhor garantia da continuidade dos cuidados de saúde primários, dos cuidados hospitalares, nos domicílios aos doentes da rede nacional de cuidados continuados integrados, das linhas de saúde do SNS24 e também da visitação a lares e estruturas que foram construídas por necessidade destes tempos muitos exigentes”
Mensagem da Ministra da Saúde nas comemorações do Dia Internacional do Enfermeiro
embora o Presidente da República tenha feito uma outra pontuação em que deixa implícito um lamento:
“o país não precisou da pandemia para dever aos enfermeiros” e que a dívida de gratidão se expressa “mesmo quando partem para fora porque não encontram em Portugal as condições de trabalho que consideram ideais, mesmo quando há setores da opinião pública que não compreendem a saga dos enfermeiros”.
Isto é, através de dois órgãos de soberania do Estado Português, reconhece-se que os enfermeiros e as parteiras acabam por ser a ESPINHA DORSAL do SNS.
Fico sempre na dúvida se aqueles que hoje tanto enaltecem os enfermeiros se sabem verdadeiramente o que é um enfermeiro, o que faz, onde faz, porque faz e como faz,
que saibam que a OMS, para além de eleger 2020 o Ano Internacional do enfermeiro e da parteira, culminou este ano a campanha NURSING NOW que teve e tem por objetivo chamar a atenção de todo o mundo e dos governantes para a necessidade de investir na enfermagem porque isso tem uma tripla consequência:
2.3.2 AMBIENTE INTERNO
Mas a minha atenção está focada nos fatores internos, no ambiente interno e nos aspetos que constituem as nossas atuais fraquezas porque das forças da enfermagem falam “os princípios e valores universais com que as enfermeiras e os enfermeiros têm exercido o seu compromisso com a sociedade, ao longo dos tempos (…). As enfermeiras e os enfermeiros têm demonstrado, ao longo de sua longa história, que colocaram o seu compromisso com as necessidades das pessoas acima dos seus interesses profissionais e que o fizeram sob a influência de uma liderança forte e coesa.
- Vivemos uma crise de liderança com sinais de falta de diálogo entre as organiza-ções profissionais: a que cuida da regulação do exercício profissional, as que pug-nam pelas condições de trabalho, as que asseguram a formação académica e as que representam os profissionais nas várias áreas de especialidade.
Os enfermeiros estão a deixar-se arrastar na espuma dos dias, a deixar-se levar por agendas imediatas e mediáticas, em detrimento de uma estratégia a médio e longo prazo, colocando a profissão no limite perigoso dos jogos político-partidários e vulnerável a narrativas populistas, com uma reduzida ou ineficaz capacidade para influenciar a tomada de decisão política e administrativa em saúde, ao nível governamental e legislativo.
Deixo à vossa consideração esta nota sobre a crise de liderança que considero ser o nó górdio do atual impasse da enfermagem portuguesa e que julgo dever ser discutida e aprofundada para se elaborar um “caderno de encargos”, uma agenda que nos permita sair da atual encruzilhada, num compromisso com o futuro, como sempre fizeram as gerações de enfermeiros que nos antecederam.