15 maio, 2020
Escola Superior de Saúde do Vale do Sousa | Instituto Politécnico de Saúde do Norte | Cooperativa de Ensino Superior Politécnico e Universitário (CESPU)
Conferência proferida por Carlos Louzada Subtil
O legado de Florence Nightingale e a recomposição de saberes e práticas da enfermagem
Este ano, comemora-se o ANO INTERNACIONAL DO ENFERMEIRO E DA PARTEIRA, declarado pela OMS:
Enfermeiras e parteiras desempenham um papel vital na prestação de serviços de saúde. (…) dedicam suas vidas a cuidar de mães e filhos, vacinam e fazem educação para a saúde, cuidam de idosos e, em geral, atendem às necessidades diárias essenciais de saúde; costumam ser o primeiro e único ponto de atendimento nas suas comunidades.
No ano passado, desenvolveu-se um protesto muito significativo por parte dos enfermeiros.
Nas comemorações do Dia Internacional do Enfermeiro, a Ministra da Saúde reconheceu que os enfermeiros “têm sido a melhor garantia da continuidade dos cuidados de saúde primários, dos cuidados hospitalares, nos domicílios aos doentes da rede nacional de cuidados continuados integrados, das linhas de saúde do SNS24 e também da visitação a lares e estruturas que foram construídas por necessidade destes tempos muitos exigentes”.
No mesmo dia, o Presidente da República Portuguesa afirmou que o país “não precisou da pandemia para dever aos enfermeiros” e que a dívida de gratidão se expressa “mesmo quando partem para fora porque não encontram em Portugal as condições de trabalho que consideram ideais, mesmo quando há setores da opinião pública que não compreendem a saga dos enfermeiros”.
Isto é, através de dois órgãos de soberania do estado Português, reconhece-se que os enfermeiros e as parteiras são a ESPINHA DORSAL do SNS.
E a Ministra da Saúde, reconhecendo que “as aspirações da profissão de enfermagem são muitas e que têm o acolhimento da maioria da população”, também reconhece “que será necessário um grande esforço para conseguir construir soluções que permitam corresponder nos tempos que aí vêm”.
Este preâmbulo serve para sustentar a principal mensagem que hoje quero passar e que se relaciona com a recomposição de saberes e das práticas dos enfermeiros e com uma competência que, estando mais ou menos explicita no atual perfil de competências do enfermeiro, precisa de ser desenvolvida.
Comecemos pelo legado de Florence Nightingale, para destacar o que do meu ponto de vista é mais relevante na sua vida e obra e que pode constituir um enorme contributo para os desafios atuais da enfermagem em termos do seu empoderamento enquanto grupo profissional.
Passemos em revista o tempo e a circunstância de vida desta enfermeira.
Nascida numa família tradicional e aristocrática inglesa, FN era mulher. E as mulheres, no quadro mental da época, estavam aprisionadas a questões de género que não podem ser mitigadas para se compreender, eventualmente, as opções que fez.
Nascida em 1820, viveu grande parte da sua vida na era vitoriana (1838-1901), uma era de prosperidade e paz, em plena “Revolução Industrial” baseada numa brutal exploração do trabalho, uma época de incremento do conhecimento nomeadamente na área da economia (Karl Marx, o Capital), da psicologia (Sigmund Freud) e da biologia (Charles Darwin, A origem das espécies).
Em 1848, tinha FN 28 anos, Edwin Chadwick promoveu a reforma do Sistema de Saúde Inglês e, em 1851, já com 31 anos, realizou-se a I Grande Exposição Mundial em Inglaterra, que passou a ser o “centro do mundo”.
Foi uma época de importantes descobertas para o avanço da medicina e o desenvolvimento do higienismo e da saúde pública. Pasteur, Lister e Kock fizeram importantes descobertas no domínio da Bacteriologia e da Microbiologia; de igual modo, na cirurgia, nas técnicas operatórias e em anestesiologia.
Mas o ambiente em que nasceu, cresceu e viveu FN foi marcado por rígidos costumes, moralismo social e sexual e fundamentalismo religioso.
Note-se que eestava em curso um forte movimento a favor do abolicionismo da escravatura, o Projeto de Reforma de 1832 tinha sido o ponto de partida para a agitação sufragista das mulheres inglesas e o impulso para os movimentos feministas a favor da igualdade de género. Note-se que a instrução das mulheres era objeto de disputa de poder entre a Igreja e o Estado, os níveis de escolaridade eram muito baixos e a mulher, pelo casamento, perdia a sua individualidade.
Só em 1870 é que foi reconhecida personalidade jurídica à mulher casada. Até então, o marido era responsável pela esposa e era ele que orientava todo o seu comportamento. Ao homem era tolerado o adultério, a bigamia, incerto, rapto e violação de mulheres, era frequente o trafico e lenocínio das mulheres, o aborto e o infanticídio.
Até 1870, o poder paternal absoluto colocava a mulher numa situação dramática, despojada de qualquer direito sobre os filhos e submetida à chantagem do marido.
Num ambiente em que a religião organizava a vida das pessoas, é compreensível que FN tenha tido, aos 17 anos, um chamamento de Deus para fazer o bem mas sobre o que não tenho dúvidas é que FN escolheu um de dois caminhos possíveis às raparigas do seu tempo e da sua condição: ou se assujeitava ao casamento e o seu futuro seria muito previsível – ora FN era uma rapariga instruída e atenta, entre outras qualidades que se viriam a manifestar mais tarde mas que já possuiria – ou fazia ruturas desafiando os pilares da moral dominante, os bons costumes e a tradição, a favor duma causa que, à época, tinha um valor simbólico muito forte, dedicar-se à proteção dos mais pobres e desfavorecidos.
Esta opção não foi original. Já antes, outras mulheres suas coevas, terão assumido esse rutura e opção bem como, mais tarde, terá sido seguida pela Europa. No nosso caso, na plêiade de mulheres também de “famílias antigas e nobres”, que abraçaram a enfermagem e criaram a Cruzada das Mulheres Portuguesas para a assistência aos soldados na 1ª. Guerra Mundial, de orientação republicana onde se alistaram e tiveram relevante papel três filhas de Bernardino Machado, então Presidente da Republica ou as Damas Enfermeiras da Cruz Vermelha Portuguesa das quais refiro, entre muitas outras, Maria Antónia Pereira Pinto, intrépida e bem instruída mulher que sabia negociar com os homens de poder das forças aliadas, sem depender da aprovação lenta e, por vezes mesquinha, dos políticos nacionais que, republicanos, não parecia fazerem a vida fácil a estas damas enfermeiras oriundas da monarquia e da Igreja. Poderia ainda, falar de mais dois vultos grandes da enfermagem portuguesa: Ana Guedes da Costa ou Palmira Tito de Morais.
Com certeza que FN foi uma figura grande e por isso, estamos a comemorá-la. Mas, tal como ela, muitas outras enfermeiras, em Portugal, em Espanha, no Brasil, nos EU e na Europa tiveram papel de relevo no desenvolvimento da profissão e a própria FN teria ficado muito orgulhosa de saber que a sua obra foi continuada, se lhe fosse possível adivinhar o futuro.
FN deve ser comemorada como uma enfermeira que inaugurou uma nova etapa no desenvolvimento da profissão, que beneficiou e soube aplicar à Enfermagem o novo conhecimento que estava a ser produzido.
Passando ao lado da sua extensa biografia, gostaria de realçar aquilo que mais me impressiona na sua personalidade e os focos da sua ação, isto é, aquilo que considero ser o seu mais valioso legado, um traço da sua personalidade que lhe conferiu uma competência extraordinária no domínio do saber-estar e saber ser: a sua SAGACIDADE política, que designo por competência política. Em que consistia essa competência? Em saber observar e analisar as situações e os problemas, definir objetivos e estratégias, falar e negociar com as pessoas certas, sabendo transigir naquilo que não era essencial, ser perseverante e não desistir, saber mobilizar a opinião pública, ser astuta, saber fazer pressão, arranjar maneira de colocar os problemas na agenda dos decisores políticos, saber argumentar.
Para quem não tem memória curta e conhece a História de Portugal, este tipo de enfermeiros foram indesejáveis durante a ditadura mas hoje, em democracia, é espectável que os enfermeiros com competência política sejam capazes de desconstruir discursos e práticas políticas enganadores e ardilosos.
E em que é que incidiu a sua ação e que hoje continua a fazer sentido? Destacaria 3 áreas que se devem manter na agenda da atual e de futuras gerações de enfermeiros: a formação, hoje com novas questões, as condições de trabalho dos enfermeiros, um velho problema que se mantém e o papel dos enfermeiros nos sistemas de saúde, na promoção da saúde e nos CSP, como é reconhecido pela sociedade, pelo Estado e por organizações prestigiadas como a OMS.
Para além das competências técnico-científicas e relacionais, das quais os enfermeiros sempre deram provas da sua proficiência, quero destacar a tal sagacidade política, a competência política que permitirá influenciar a tomada de decisão a nível micro, médio e macro, no que se refere às políticas e aos cuidados de saúde, uma competência que decorre do seu compromisso social.
Esta competência inclui várias áreas: os vários poderes dentro da própria profissão (hierarquias no local de trabalho, sindicatos, ordem e associações profissionais), a forma como gerem o conhecimento, a informação e as novas tecnologias (informática, teletrabalho, robótica e inteligência artificial), se relacionam com os seus pares e outros profissionais da saúde, como lidam e debatem as diversas ideologias, os poderes político e religioso.
Será essa sagacidade que permitirá aos enfermeiros responder a algumas inquietações que deixo para reflexão e debate:
De que forma estão os enfermeiros a conciliar o uso crescente de novas tecnologias com o perfil de competências descritos no regulamento do exercício profissional (REPE) e nos padrões de qualidade dos cuidados de enfermagem gerais ou especializados? De que forma estão os enfermeiros a lidar com o seu uso crescente ficando libertos de certas tarefas mas, ao mesmo tempo, esvaziados de procedimentos que tradicionalmente lhes eram atribuídos?
A par disto, que dizer dos enfermeiros que decidem ou permitem que algumas dessas funções mais simbólicas e identificadas com a satisfação das necessidades humanas básicas sejam delegadas nos auxiliares, nomeadamente os cuidados relacionados com a higiene e a alimentação?
Que ganhos e perdas há neste processo de transferência de cuidados devido à inovação tecnológica e à delegação de cuidados “menores”?
Estarão estes cuidados a perder o seu significado e valor como momento privilegiados para uma interação humanizada e terapêutica junto de quem precisa de ser cuidado? Ainda faz sentido falar em “cuidados invisíveis”, dificilmente quantificáveis para a definição de dotações de pessoal, mas imprescindíveis para a qualidade dos cuidados, para o bem-estar e a dignidade humana?
Os registos informatizados do SClínico Hospitalar e do SClínico – (CSP) poderão servir para evidenciar ganhos em saúde, mas não se poderá estar a cair na falácia de que um “padrão de cuidados” pré-definido (output do computador) é que estrutura a intervenção do enfermeiro? Carregar informação acerca do doente e confiar que um algoritmo indique um diagnóstico ou conjunto de diagnósticos, pode ser facilitador para alguns, mas não poderá ser um caminho perigoso para outros, deixando pouco espaço para o juízo clínico?
Por outro lado, a crescente complexidade das situações de saúde e doença, exigem uma abordagem interdisciplinar, que extravasa a área da saúde, obriga ao trabalho em equipa e à utilização da criatividade para contornar obstáculos internos e externos à organização onde os profissionais desenvolvem a sua atividade.
De que forma estão os enfermeiros a dar resposta à emergência de velhas conceções que conferem ao saber médico um caracter de saber central que converte em saberes periféricos os outros saberes profissionais?
O paradigma do CUIDAR, enquanto necessidade da Humanidade, é um desafio exclusivo da enfermagem ou é comum ao conjunto das diferentes profissões da saúde, tal como é reclamado pelo grupo profissional dos médicos – a quem tradicionalmente é atribuída uma função curativa e reparadora – e pelo grupo dos auxiliares em quem os enfermeiros vão delegando tarefas?
Por outro lado, o cenário dos cuidados está a mudar vertiginosamente, com a transferência de cuidados hospitalares para a comunidade (unidades de cuidados continuados e domicílio) ficando reservadas para o hospital apenas os casos graves e agudos e antevendo-se o momento em que predominará um novo contexto de cuidados, a casa-hospital. Serão capazes os enfermeiros de afirmar um desempenho mais autónomo, polivalente e flexível, de gerir equipas multidisciplinares, de favorecer o empoderamento dos cidadãos nas tomadas de decisões em saúde, de promover os direitos e deveres do cidadão, de lidar positivamente com a diversidade, a diferenciação e o multiculturalismo?